17 de dezembro de 2010

Operadores verofuncionais em termos de condicionais e negação*

Uma das características interessantes da lógica proposicional é a existência do que chamamos de operadores verofuncionais. Um operador é definido como verofuncional quando se pode determinar o valor de verdade de uma ou mais proposições concatenadas ao operador sem recorrer ao operador, ou seja, somente pelo valor de verdade da ou das proposições. Os operadores verofuncionais são cinco: conjunção, negação, disjunção, condicional e bicondicional. Considere a proposição “João é gay e Maria é estelionatária”. Chamemos “João é gay” de P e “Maria é estelionatária” de Q. Admitindo que o símbolo usado para representar a palavra “e” (conjunção) é ^, temos então P ^ Q.

Nós não precisamos do operador para determinar os valores de verdade de P e de Q. No entanto, para uma fórmula com a conjunção ser verdadeira, P e Q terão de ser verdadeiras.

Para ilustrar isso, observe a tabela de verdade da conjunção:

P Q P ^ Q
V V V
V F F
F V F
F F F

Alguns operadores não são verofuncionais. Operadores não-verofuncional construirão proposições cujos valores de verdade não podem ser determinados somente com base no valor de verdade da proposição ou proposições concatenadas ao operador. Ao dizermos que João acredita que Q, em que Q é “Maria é estelionatária”, não podemos concluir nada sobre o valor de verdade de Q. Em outras palavras, não sabemos se podemos ou não enquadrar Maria no artigo 171 do Código Penal brasileiro.

Meu objetivo aqui, no entanto, não é exatamente discorrer sobre os cinco operadores verofuncionais em separado, e sim tentar demonstrar que podemos reduzi-los a apenas dois, nomeadamente, negação e condicional. A minha fonte principal na empreitada é o capitulo sobre lógica proposicional do livro “Logic for Philosophy”, do filósofo Ted Sider, atualmente professor na Universidade de Nova York. O procedimento será o seguinte: primeiro, vou transcrever a conjunção em termos de condicional, depois será a vez de a disjunção ter o mesmo tratamento e, por último, e da mesma forma, a bicondicional. No que concerne à conjunção, a demonstração é do próprio Sider. A disjunção e a bicondicional são tentativas minhas e eu não sei se estão corretas. Provavelmente estão erradas e por esse motivo agradeço ao leitor quaisquer correções.

Antes de tudo, a definição de interpretação pode ser útil:

Interpretação: uma interpretação é uma função (i) que assume para A o valor de 1 ou de 0. Se, por exemplo, uma proposição atômica P tiver o valor 1 ela é verdadeira, ao passo que se tiver o valor 0 é falsa. Assim, podemos dizer, por exemplo, que i(P) = 1 ou que i(P) = 0. Como em uma função um ou mais inputs só podem ser ligados a um output, concluímos que a função de verdade seja de uma proposição atômica P ou de uma fórmula mais complexa como P → Q tem de ser considerada em termos de verdade ou falsidade, e nunca ambas as coisas ao mesmo tempo.

Ligado ao que foi dito acima, Sider nos oferece um símbolo (V) correspondente a função do valor de verdade para expressões complexas. Por exemplo, podemos escrever a fórmula complexa acima nos seguintes termos: Vi (P → Q) = 1.

Como queremos tratar de condicionais e negações, definamos seus valores de verdade:

Condicional: o valor de verdade da condicional é verdadeiro se, e somente se, o seu antecedente for falso ou o seu conseqüente for verdadeiro. Dessa forma, temos que Vi (A → B) = 1 se, e somente se Vi (A) = 0 ou Vi (B) = 1.

Negação: o valor de verdade de uma proposição negada é verdadeiro se, e somente se, a negação da negação dessa dada proposição que acabamos de mencionar for falsa. Temos, então que Vi (~A) = 1 se, e somente se, Vi (A) = 0.

Vejamos as tabelas de verdade, respectivamente, da condicional e da negação:


P Q P → Q
V V V
V F F
F V V
F F V


P ~P
V F
F V

Já vimos alguma coisa sobre a conjunção, então definamos seu valor de verdade como verdadeiro se, e somente se, Vi (A) = 1 e Vi (B) = 1.

Disjunção: o valor de verdade de uma disjunção é verdadeiro se, e somente se, um de seus disjuntos for verdadeiro. Assim, Vi (A V B) = 1 se, e somente se, ou Vi (A) = 1 ou Vi (B) = 1.

Bicondicional: o valor de verdade de uma bicondicional é verdadeiro se, e somente se, o valor de verdade de A for igual ao de B. Assim, Vi (A ↔ B) = 1 se, e somente se, Vi (A) = Vi (B).

Quando falamos de valor de verdade dos operadores não estamos nos referindo ao valor de verdade de um “e” isolado, por exemplo. Referimo-nos, sim, a quaisquer fórmulas bem formadas que contenham os operadores, como, por exemplo, P ^ Q.

Veja as tabelas de verdade, respectivamente, da disjunção e da bicondicional:


P Q P V Q
V V V
V F V
F V V
F F F


P Q P ↔ Q
V V V
V F F
F V F
F F V


Passemos, então, para a demonstração do valor de verdade da conjunção em termos de condicional:

Conjunção

Assumamos que Vi (A ^ B) = 1 para chegarmos no seguinte resultado: Vi (A) = 1 e Vi (B) = 1. Ou seja, para podermos dizer que se o primeiro, então o segundo.

Vi (A ^ B) = 1 é equivalente a Vi (~(A → ~B)) = 1.

Se Vi (~(A → ~B)) = 1, então a negação disso, que é Vi (A → ~B) = 0 (ver regra da negação).

Com a definição da condicional em mente, sabemos que não é o caso de ou Vi (A) = 0 ou Vi (~B) = 1. Se não é o caso disso, temos, então, por De Morgan, que Vi (A) = 1 e Vi (~B) = 0. Aplicando a regra da negação em Vi (~B) = 0, podemos concluir que Vi (B) = 1. Assim, Vi (A) = 1 e Vi (B) = 1.

O que acabamos de ver foi o seguinte: Vi (A ^ B) = 1 → Vi (A) = 1 e Vi (B) = 1.

Façamos agora o caminho de volta para tentar demonstrar que se Vi (A) = 1 e Vi (B) = 1, então Vi (A ^ B) = 1.

Assumamos que Vi (A) = 1 e Vi (B) = 1. Assim, uma vez que Vi (B) = 1, sabemos pela regra da negação que Vi (~B) = 0. Dada a definição da condicional, sabemos que não é o caso de Vi (A → ~B) = 1. Portanto, pela negação novamente, Vi (A → ~B) = 0. E mais uma vez pela negação, Vi (~(A →~B)) = 1. Uma vez que Vi (~(A → B)) = 1, então Vi (A ^ B) = 1.

Portanto, Vi (A ^ B) = 1 se, e somente se, Vi (A) = 1 e Vi (B) = 1. □

Disjunção

Queremos demonstrar que Vi (A V B) = 1 se, e somente se, ou Vi (A) = 1 ou Vi (B) = 1.

Vi (A V B) = 1 é equivalente a Vi (~A → B) = 1. Assumindo que Vi (~A → B) = 1, então Vi ~(~A → B) = 0. Pela Negação da Condicional, temos que Vi (~A ^ ~B) = 0.

Mas pensemos em Vi ~(~A → B) = 0. Façamos, aqui, com esta condicional, o mesmo que foi feito acima, na demonstração da conjunção.

Sabemos que não é o caso – pela definição da condicional - de Vi (A) = 1 ou Vi (B) = 0. Por De Morgan, sabemos que Vi (~A) = 1 e Vi (~B) = 0. Pela negação, sabemos que Vi (A) = 0 e Vi (B) = 1. A definição da condicional nos diz que ou Vi (A) = 0 ou Vi (B) = 1.

Uma vez que Vi (A V B) = 1, essa mesma fórmula posta de forma condicional tem de ter valor igual a 1.

Assim, Vi (~A → B) satisfaz a definição (note os valores de A e B no penúltimo parágrafo). Portanto, Vi (~A → B) = 1.

Vimos que Vi (A V B) = 1 se, e somente se, Vi (A) = 1 ou Vi (B) = 1.

Façamos agora o caminho de volta para tentar demonstrar que Vi (A) = 1 ou Vi (B) = 1 se, e somente se, Vi (A V B) = 1.

Assumamos que Vi (A) = 1 ou Vi (B) = 0. Podemos dizer, assim, que Vi (~A) = 0 ou Vi (~B) = 1. Porém, se formos aplicar a regra da condicional, veremos que não é o caso de Vi (~A) = 0 ou Vi (~B) = 1. Logo, temos, novamente por De Morgan, que Vi (A) = 0 e Vi (B) = 1. Isso satisfaz a definição da condicional de que ou Vi (A) = 0 ou Vi (B) = 1. Colocando, então, em forma de condicional, podemos dizer que Vi (~A) = 1 → Vi (B) = 1. Assim, Vi (~A → B) = 1 e, conseqüentemente, Vi (A V B) = 1.

Assumamos, agora, que Vi (A) = 0 ou V(i) B = 1. Aqui o trabalho parece ser mais fácil, uma vez que o que temos aqui é a própria definição da condicional. Assim, podemos dizer que Vi (~A → B) = 1. Por conseguinte, Vi (A V B) = 1.

Vimos, com isso tudo, que Vi (A V B) = 1 se, e somente se, ou Vi (A) = 1 ou Vi (B) = 1. □

Bicondicional

Vejamos o que acontece com a bicondicional. Vamos relembrar o que foi dito sobre ela: o valor de verdade de uma bicondicional é verdadeiro se, e somente se, o valor de verdade de A for igual ao de B. Assim, Vi (A ↔ B) = 1 se, e somente se, Vi (A) = Vi (B).

Assumamos que Vi (A ↔ B) = 1. Isso significa que Vi (A) = 0 e Vi (B) = 0 ou Vi (A) = 1 e Vi (B) = 1.

Assim, podemos dizer que Vi ~ (A ↔ B) = 0. Disso, podemos extrair que Vi ~ (A ↔ B) = 0 é equivalente a Vi (A) = 1 e Vi (B) = 0 ou Vi (A) = 0 e Vi (B) = 1.

Aplicando a regra da condicional, vejamos como funcionam os diferentes valores de verdade para A e para B. O que podemos notar, e não acredito que seja por acaso, é que a condicional funciona de acordo com a regra nas ocasiões em que os valores de verdade de A e B são iguais. Vejamos:

Vi ((A) = 0) → (Vi (B) = 0) = 1
Vi ((B) = 0) → (Vi (A) = 0) = 1

Vi ((A) = 1) → (Vi (B) = 1) = 1
Vi ((B) = 1) → (Vi (A) = 1) = 1

Compare com o que ocorre quando tentamos valores diferentes para A e B:

Vi ((A) = 0) → (Vi (B) = 1) = 1
Vi ((B) = 1) → (Vi (A) = 0) = 0

Vi ((A) = 1) → (Vi (B) = 0) = 0
Vi ((B) = 0) → (Vi (A) = 1) = 1

Assim, se Vi (A) = Vi (B), a bicondicional tem valor 1. E se a bicondicional tem valor 1, Vi (A) = Vi (B). Veja que tanto a “ida” quanto a “volta” das condicionais assumem valor 1 se os valores de A e B forem os mesmos. Isso, no entanto, não ocorre quando assumimos valores diferentes para A e B.

Assim, podemos dizer que Vi (A ↔ B) = 1 se, e somente se, Vi (A) = Vi (B). □


Referências:

Sider, Theodore (2010). Logic for Philosophy. Oxford: Oxford University Press

Downes, Stephen, “Operadores Proposicionais”, em Crítica na Rede. http://criticanarede.com/operator.htm (acessado em 30/04/10)

Newton-Smith, W. H. (1985) Lógica: Um Curso Introdutório. Trad. D. Murcho. Lisboa: Gradiva, 1998.

9 de agosto de 2010

Financiamento público de cultura: os mecenas não estão na festa

No Brasil, todo teórico da comunicação quer melhorar a qualidade da informação; todo militante político quer que a população seja mais politizada e todo educador quer que a população leia mais. Só que quase todo mundo se esquece de perguntar a essa massa abstrata chamada população se ela realmente quer essas coisas. O Brasil é um país em que vigora certo paternalismo do bem, onde grupos de acadêmicos e outras sumidades sempre sabem o que é bom para o povo, cabendo ao povo o rótulo de ‘‘alienado’’ caso continue, mesmo assim, preferindo assistir novelas a ler Machado de Assis. Quando as pessoas não se encaixam naquilo que nossas teorias mais caras dizem que elas deveriam se encaixar, as chamamos com nomes feios.

Como o povo não sabe de nada, os acadêmicos e, claro, os políticos acabam decidindo pelo púbico o que é, afinal, de interesse público. Em alguns casos, isso custa dinheiro. Tomemos o exemplo do financiamento da cultura com recursos de governos. A pergunta é: por que um padeiro que jamais se interessou por literatura tem de ajudar a financiar a vinda de escritores estrangeiros ao Brasil? Mais: por que um administrador de empresas que jamais se interessou por cinema tem de bancar a realização de um filme que ele jamais vai ver? A maioria dos artistas, escritores e cineastas produzem coisas que o grosso da população não se interessa e que provavelmente jamais vai se interessar. Infelizmente, temos de encarar a realidade. Quase todo mundo vai continuar escutando Ivete Sangalo e não notará a menor diferença no universo caso todos os escritores importantes desapareçam das livrarias.

Tivemos recentemente, no Rio de Janeiro, a Festa Literária Internacional de Paraty, conhecida como Flip. Muita badalação e escritores consagrados, como o britânico Salman Rushdie, mundialmente conhecido após o líder islâmico Aiatolá Khomeini ter colocado sua cabeça a prêmio por causa de passagens do livro Versos Satânicos. Como toda festa, a Flip custou bastante dinheiro. E parte do dinheiro veio do bolso do contribuinte, uma vez que o estado não produz riqueza. A Folha de São Paulo informou que o Governo do Estado do Rio de Janeiro ficou com a responsabilidade de arcar com cifras milionárias relacionadas à realização do evento; isso sem falar nos recursos captados por meio da Lei Rouanet, que permite que empresas amaciem impostos com investimentos em cultura. Fez-se o evento e os convidados vieram de longe. O problema é que boa parte dos mecenas ficaram em casa assistindo televisão.

Existe uma obsessão de que a cultura – ou parte dela - deve ser financiada pelo governo. De uma hora para a outra, qualquer percursionista pode se sentir no direito de arrancar do bolso do contribuinte as divisas necessárias para gravar um disco que ninguém vai ouvir; da mesma forma, um cineasta pode agora pleitear recursos para fazer um filme que ninguém vai ver. Ingenuamente, eu achava que cultura era uma manifestação espontânea e que assim formaria sua própria demanda por um determinado produto ou estilo. Estava errado. Chegamos à divertida situação em que o erário precisa bancar manifestações culturais para forçar uma demanda que deveria ter surgido naturalmente.

Se a maioria das pessoas não liga para literatura, para cinema e para artes em geral, não há sentido forçá-las a pagar por isso. Tornar compulsório o financiamento de manifestações artísticas é desrespeitar o gosto pessoal do contribuinte; faz com que lhe seja retirado o direito de pagar somente pela arte que lhe aprouver. É infantilizá-lo. Se ninguém, por exemplo, quiser saber de teatro de rua, a única solução minimamente sensata é deixá-lo definhar. Não há motivos para forçar o consumo. Quem se interessar, que vá atrás. Muitas vezes, obscurecido por um discurso de interesse público, o que se vê é o puro interesse privado – seja do artista, da gravadora ou da editora. Na antiguidade e em períodos mais modernos, os grandes mecenas costumavam financiar os artistas por verdadeiro interesse na arte produzida. No Brasil, o mecenato é compulsório e a maioria dos ilustres mecenas não faz a menor idéia de quem financia.

20 de dezembro de 2009

De que lado está, senhor Altamiro Borges?

O Partido Comunista do Brasil - PCdoB - é realmente um partido com gente divertida. Além do ilustre Walter Sorrentino (ver post abaixo), conta também com o apoio de Altamiro Borges, que é jornalista e presta serviço como secretário do comitê de comunicação do partido. Altamiro Borges proferiu uma comunicação, há alguns meses, em evento que antecedeu a Conferência Nacional de Comunicação – Confecom. O jornalista demonstrou bastante preocupação com a hegemonia dos “barões” da imprensa brasileira. Disparou contra as famílias Marinho, Civita, Frias e mais algumas outras que controlam grandes meios de comunicação no país.

Para Altamiro Borges, tem de haver maior democratização no que tange à circulação de informação. Segundo ele, deveríamos fomentar a viabilidade de outros veículos para competir com os grandes. Em primeira análise, as propostas são até boas. Podemos dizer que ao se incentivar veículos alternativos, talvez seja possível existir maior diversidade de opiniões e pontos de vista diferentes. Conviver com a multiplicidade de opiniões e pontos de vista – estejam eles certos ou errados – é um dos pilares de qualquer democracia que se pretenda séria.

O problema é que comunista não nega o gene totalitário. E quando resolve falar de democracia ou assuntos correlatos, a pulga sempre deve nos subir do cangote para a orelha. No site do PCdoB - que, como dito, conta com os préstimos de Altamiro Borges - vemos a seguinte proposta de ação em caso de de o partido tomar o poder e tiver, finalmente, a possibilidade de instaurar o paraíso socialista no Brasil:

A FIM de impedir a difusão em massa de idéias e concepções decadentes e reacionárias e assegurar o acesso dos trabalhadores e do povo aos meios de ampla comunicação social, os canais de televisão e as estações de rádio serão convertidos em propriedade estatal, ou de Fundações ligadas à entidades sociais e culturais, ou de centros de Estudos e Pesquisas científicas, ou, ainda, das Universidades.

Ou seja, o PCdoB se julga no direito de decidir o que são “idéias e concepções decadentes e reacionárias”. Além disso, pretende impedir a difusão em massa de tais idéias. Dessa forma, o partido se coloca em uma posição de perfeição epistêmica que chega ao ponto de pontificar sobre o que pode e o que não pode circular. Se Altamiro Borges tem qualquer tipo de ligação com o Partido Comunista do Brasil, é bastante provável que já tenha lido suas propostas no sentido de construir um “futuro socialista”. Se não leu, é relapso.

Supondo que Altamiro Borges leu o programa do próprio partido que apóia, entra em um pequeno conflito. A mesma pessoa que disse endossar a pluralidade de idéias é entusiasta de um partido que, uma vez no poder, irá acabar com a livre circulação de idéias. E Qualquer medida que impeça a livre circulação de idéias, sejam elas quais forem, está em pleno desacordo com o debate livre e com a pluralidade de opiniões. É simples, Altamiro Borges: ou se apóia a liberdade de opiniões ou se é do PCdoB. Mas há quem prefira ser do PCdoB.

21 de novembro de 2009

Walter Sorrentino e eu

Walter Sorrentino acredita que os assassinatos que Cesare Battisti cometeu na Itália foram políticos. Eu não. Walter Sorrentino é um dos grandes nomes do PCdoB. Eu não. Walter Sorrentino justifica crimes de sangue quando enxerga motivações políticas em nome da “causa”. Eu não. Walter Sorrentino tem um blog chamado “Projetos para o Brasil”. Eu não. Walter Sorrentino deve se arrepiar todo quando pensa em colocar em prática seus projetos para o Brasil. Eu também me arrepio todo.

Um dos últimos textos que Walter Sorrentino escreveu defende a permanência de Cesare Battisti no Brasil. É uma posição arrojada. O italiano foi condenado por quatro homicídios em seu país de origem e é tido por todas as instâncias legais como criminoso comum. Já que quase ninguém liga para o que Walter Sorrentino escreve no blog, decidi comentar por lá. Ao me responder, Walter Sorrentino teve dificuldades para caracterizar assassinatos comuns como “crimes políticos”. Mas disse, porém, olímpicamente, que até “os fascistas sabem que foram crimes políticos, cometidos em nome de uma causa, mesmo sendo ‘de sangue.’” Ele só não disse quais fascistas endossam essa tese.

Para Walter Sorrentino, o assassinato de quatro pessoas, desde que em nome da causa, tem certo ar de legitimidade. Apesar de ter dito que não defende os métodos adotados pelo italiano, legitima-os ao posicionar-se em favor do refugio político. Walter Sorrentino parece se esquecer que não é muito usual conceder refúgio político para criminosos comuns.

Walter Sorrentino também acredita que o PCdoB, na época da ditadura militar, lutava para que a liberdade fosse restabelecida. Eu não. Desde quando partido comunista e liberdade convivem bem? Walter Sorrentino ignora os exemplos clássicos: União Soviética, China, Cuba, Camboja, Coréia do Norte. Se há um partido comunista no poder, não há liberdade. Walter Sorrentino prefere dizer que em todos os países capitalistas “há uma ditadura do capital, da fome, da guerra e da opressão”. É mesmo, Walter Sorrentino? Deve ser por isso que os noruegueses, suíços, ingleses, canadenses, chilenos e norte-americanos estão doidos para que algum partido comunista tome o poder.

Encerrando o debate, Walter Sorrentino pontifica: “O socialismo que defendo para o país será democrático, ponto. Quem viver verá.” Então tá. Walter Sorrentino acredita em socialismo democrático. Eu não.

19 de novembro de 2009

Tarso Genro está de sacanagem

O ministro da Justiça Tarso Genro é realmente birrento. Parece que quer se agarrar a qualquer coisa para manter Cesare Battisti no Brasil. O primeiro argumento do ministro era o de considerar Battisti como criminoso político. E, como tal, deveria ser abrigado no Brasil. Por cinco votos contra quatro, os ministros do Supremo Tribunal Federal entenderam que Cesare Battisti não é um criminoso político. Sendo assim, o argumento inicial de Tarso Genro é demolido. Mas o homem é valente e não aceita.

Segundo o Estado de São Paulo, o ministro agora vê pressões de cunho fascista vindas das autoridades italianas. Ou seja, Cesare Battisti é preso, julgado e condenado por quatro homicídios na Itália. Além disso, a condenação é referendada por organismos internacionais. Se os italianos o exigem de volta para que cumpra pena, eles estão se portando como fascistas.

Tarso vê também alguns fantasmas. Para ele, a "Itália não é um país nazista nem fascista, mas vem sendo constatado um crescimento preocupante do fascismo em parte da população italiana". Vem sendo constatado por quem, senhor ministro? Até onde me consta, a Itália ainda é um estado democrático em que influências de cunho fascista (e muito menos nazista) não fazem parte do ordenamento jurídico.

Ainda segundo o ministro, o Brasil se orgulha de sua tradição de conceder refúgio a vários perseguidos políticos e fugitivos de ditaduras. O que o senhor ministro não vê é que, dada a decisão do STF no caso Battisti, está oferecendo refúgio a um criminoso comum, e não político.

15 de novembro de 2009

O dito que nada diz

Na edição de número 137 da revista Cult, Francisco Bosco escreve um artigo sobre o "não dito" em algumas obras literárias. O "não dito", apresenta ele, é um modo de "como não dizer de forma singular" dentro da obra. Em certa altura do texto, Bosco tenta comparar, no que concerne ao "não dito", a obra "Leite Derramado", de Chico Buarque, à "O som e a fúria", de William Faulkner. Até aí, vá lá, a teoria da literatura deve dar conta desse tipo de meandro narrativo e nada há de terrível na comparação de obras. O problema se dá na absoluta pomposidade praticada pelo articulista em certos trechos. Refletindo sobre o princípio negativo, Bosco nos brinda com o seguinte parágrafo:

"Para além dessa mera descrição de procedimentos, importa observar que o princípio negativo que os orienta [os personagens] não constitui, ele mesmo, uma positividade. Em outras palavras, o não dito dessas narrativas é um mero não dito. Ele é, certamente, um efeito do dito, mas não chega a ser um modo negativo de dizer. Pois, como procurarei mostrar adiante, existe o não dito que é um modo de dizer."

Passe os olhos no parágrafo acima. Tente de novo. Mais uma vez. Qualquer leitor normal provavelmente andaria por estas linhas sem fazer a menor idéia do que querem dizer - mesmo com o auxílio do resto do texto. Admitindo que, de fato, o trecho queira dizer alguma coisa, o significado é praticamente tapado pelo excesso de abstrações exigidas do leitor. Não é um bom ponto de partida acompanhar o que o autor quer demonstrar sem fazer muita idéia do que ele quer demonstrar. Poucas pessoas têm paciência para reler um trecho cinco ou seis vezes. A obviedade gritante de que um artigo tem de ser o mais claro possível é constantemente ignorada. Os maneirismos acadêmicos tornam o exercício da clareza uma tarefa quase impossível. A vontade de ostentar um desempenho estilístico superlativo freqüentemente assassina um assunto interessante.

Existem, porém, casos mais graves. Em algumas situações a empolação estilística vem acompanhada de um bônus desagradável: a completa falta de noção. Pode ser sintomático que as áreas ligadas ao estudo da literatura foram um dos grandes expoentes de uma tradição de escrita que prima pelas trapalhadas vernaculares e, nos casos mais graves, pela estupidez pura e simples. Ficasse só nos estudos da literatura, não seria tão mal. Problema maior é quando filósofos famosos começam a pontificar sobre a "realidade"[¹]. Francis Wheen oferece um exemplo de deboche intelectual em seu delicioso "Como a picaretagem conquistou o mundo". O autor da façanha é ninguém menos do que Gilles Deleuze:

"Em primeiro lugar, os eventos singularidades correspondem a séries heterogênas, organizadas num sistema que não é estável nem instável, mas 'metaestável', dotado de uma energia potencial na qual se distribuem as diferenças entre as séries. (...) Em segundo lugar, as singularidades possuem um processo de auto-unificação sempre móvel e deslocado, na medida em que um elemento paradoxal atravessa as séries e as faz ressoarem, envolvendo os pontos singulares correspondentes num único ponto aleatório e todas as emissões, todos os lances de dados, numa única jogada."[²]

Como sugere o próprio Wheen, podemos passar horas fitando o parágrafo, tomar drogas alucinógenas para entendê-lo ou até mesmo tentar decompô-lo. Não adianta: o resultado será sempre o mesmo. Trata-se de um amontoado de palavras completamente destituído do mais ralo sentido. É quase aquilo que os portugueses chamam por "algaraviada". Aqui, diferente do texto de Francisco Bosco, é impossível supor que haja sentido. Só podemos rezar para que a frase "um dia, talvez, o século seja deleuziano", de Michel Foucault, não passe de puro delírio. Se um século, qualquer que seja, chegar a ser deleuziano, tanto pior para o século.

Richard Dawkins, em "O capelão do Diabo", também oferece um bom exemplo da mais lustrosa cara de pau. Jacques Lacan, um dos papas da psicanálise, teve realmente a coragem de dizer que o órgão masculino erétil "é igualável a raiz quadrada de -1 da significação produzida acima, do gozo que ele restitui pelo coeficiente de seu enunciado à função de falta de significante (-1)." Ora, aqui também não há qualquer chance de defesa. A sentença de Lacan não passa de pura bobagem. No caso, com o agravante de usar inadvertidamente elementos da matemática. Espero que ninguém pense em Lacan quando estiver com o órgão erétil.

É muito difícil levar a sério um teórico que diz uma coisa dessas - mesmo se estiver, em outro momento, dizendo algo sério. É uma atitude bastante sensata ter reservas quanto a tudo que um homem que proferiu uma patifaria desse nível disser. É mais ou menos como aquela história do garoto que sempre fingia estar afogando para pregar peças nos outros. No dia em que se afogou de verdade, ninguém deu a mínima.

Não há, de fato, a menor necessidade de se escrever um artigo ou texto comum com arroubos de grandiloquëncia estilística. Isso só servirá para aborrecer o leitor que tiver a bondade de pegar o texto para lê-lo. É no mínima uma falta de delicadeza com quem lê. Talvez seja interessante que Francisco Bosco tenha isso em mente no momento de construir um parágrafo como o citado aqui. Já no caso de Deleuze e Lacan, a coisa parece chegar ao domínio da pura patifaria intelectual. Recorrendo ao velho verniz de erudição disparatada que tende a esconder a pura falta de conteúdo, alguns pensadores do mesmo calibre ainda gozam de grande prestígio. Mas sempre surge um Alan Sokal[³] para acabar com a mixórdia.

[¹] Entre aspas, é claro, uma vez que, segundo certos papas do desconstrucionismo, a realidade é só uma construção textual.

[²] Pelo visto, o trecho é famoso. Richard Dawkins usa esta mesma passagem de Deleuze como exemplo de patifaria intelectual ao resenhar o livro "Imposturas Intelectuais", de Sokal e Bricmont.

[³] Alan Sokal, físico, é responsável por um dos momentos mais divertidos da academia norte-americana. Em 1996, submeteu um artigo completamente destituído de sentido à revista Social Text, editada pela Duke University Press. A revista é conhecida por enrolações pós-modernas e análises culturais disparatadas. O artigo de Sokal - Transgressão das fronteiras: por uma hermenêutica transformativa da gravidade quântica - foi publicado pela revista. Logo depois, Sokal informou que o texto era uma fraude repleta de nonsenses. O episódio abalou a reputação da revista e rendeu-lhe o prêmio ig-nobel de literatura em 1996. De forma olímpica, a Social Text seguiu em frente e continua a ser publicada.

9 de novembro de 2009

Que não volte nunca mais

Nestes dias se comemora os 20 anos da queda do Muro de Berlim. A queda, de fato, mais do que a união entre um país até então dividido, significa o enterro definitivo (espero!) de alguns dos regimes mais autoritários já conhecidos. Em nome da libertação da classe proletária das amarras impostas por industriais e proprietários de terra, criou-se uma casta dirigente impenetrável que fez dos cidadãos prisioneiros por quase um século.

Como salientou Edmund Wilson, Karl Marx não considerou que os governos revolucionários, que seriam exercidos pelos antigos oprimidos e por seus líderes, pudessem repetir a brutalidade praticada pelos burgueses da época. Chegou a acreditar, sim, em uma, digamos, tirania justa (se é que isso é possível). "O governo que Marx imaginava para o bem estar e a elevação da humanidade (...) era um despotismo de classe exclusivista e implacável dirigido por manda-chuvas de elevados princípios que haviam conseguido transcender suas classes de origem, como Engels e ele", comenta Wilson.

O que se viu, porém, com o surgimento do caráter autoritário destes regimes, foi que o tal despotismo exclusivista e implacável resultou em opressão pura e simples. Mesmo assim, Marx acertou em quase tudo. Tivemos um despotismo de classe exclusivista. Era implacável. Era dirigido por manda-chuvas. Infelizmente, ele errou na parte dos "elevados princípios". Como se sabe, os manda-chuvas realmente gostavam de prender, torturar e matar. Princípios elevadíssimos.

De todo modo, e deixando de lado a velha desculpa que afirma ser o socialismo real bem diferente do "científico" - como se dialética hegeliana fosse ciência -, ficou provado que governos supostamente libertadores do povo foram e são, na verdade, meios eficientes de autoritarismo. Foi assim na União Soviética. Foi assim no Camboja. É assim na China (mesmo que em economia a conversa seja outra). É assim em Cuba e é assim na Coréia do Norte - estes dois últimos as derradeiras reservas ambientais onde ainda podemos observar, do mesmo modo que apreciamos um panda em seu habitat, o fenômeno do centralismo econômico.

É exatamente por isso que me arrepio todo quando vejo alguém falar em revolução socialista no Brasil. Nunca existiu socialismo e liberdade ao mesmo tempo e em um mesmo lugar. Não tenho muitas razões para pensar que por aqui seria diferente.

Mas agora é comemorar. É tempo de abrir um bom vinho e brindar a queda de um monumento que representou o autoritarismo, o centralismo e a repressão. O muro, quando veio abaixo de leste para oeste (coincidência?), ajudou a colocar uma bela pá de terra nas tiranias de esquerda. Faltam ainda algumas pás de terra. Se Deus quiser, virão.

8 de novembro de 2009

Inversão*

A Universidade Bandeirantes (Uniban), depois de muita demora, resolveu agir. O caso é o seguinte: no dia 22 de outubro, a aluna de turismo Geisy Arruda foi à faculdade usando um vestido, assim, bem curtinho. Os outros alunos não gostaram. Por causa disso, fizeram uma baderna inacreditável por causa do paninho que a moça vestia. Geisy teve de ser retirada do local com a ajuda da polícia sob os gritos dos estudantes. Nada elogiosos, é claro. Todos estavam esperando a punição dos envolvidos para se colocar, enfim, uma pedra sobre o assunto. Mas o que a universidade fez? Expulsou Geisy. Para a Uniban, “a atitude provocativa da aluna resultou numa reação coletiva de defesa do ambiente escolar”. Ainda segundo a universidade, os alunos que foram identificados na algazarra foram suspensos temporariamente.

Muito curiosa a concepção que a Uniban tem do que é a “defesa do ambiente escolar”. Uma matilha de centenas de alunos prontos à agressão e com gritos de “puta” é certamente uma excelente maneira de se zelar pela, chamemos assim, moral e bons costumes. O linchamento verbal e a baderna se tornam instrumentos aceitáveis de manifestação em favor da, surpresa das surpresas!, ordem.

Trata-se do tipo da mentalidade porca que coloca a culpa do assalto no assaltado, ou que coloca a culpa do estupro na estuprada. “Ora, ela estava usando uma roupa tão curta! O acusado não pôde se segurar.” Como se fôssemos animais irracionais incapazes de refrear nossas vontades quando estimulados na direção de qualquer coisa. Se, como o assessor jurídico da universidade disse à Folha, a aluna já estava há algum tempo se comportando de maneira insinuante, que fossem tomadas medidas – em privado – junto à direção da instituição. Por que só agora?

É realmente estarrecedor que a universidade expulse a aluna e apenas suspenda os baderneiros. É possível extrair disso uma hierarquia de valores. A instituição parece achar mais grave uma aluna, vá lá, insinuante, do que a o linchamento verbal praticado pela matilha. Pior ainda é justificar a agressão como uma tentativa de “defesa do ambiente escolar.”

*Por motivos de pressão de todos os lados, a Uniban desistiu, nesta segunda (09), de expulsar Geisy.

31 de outubro de 2009

Eles são o que são; nós somos o que somos

Segue um trecho de "O Mundo Assombrado Pelos Demônios", de Carl Sagan (Cia da Letras, 2002):

"[Thomas] Jefferson teve pouco a ver com a redação concreta da Constituição dos Estados Unidos; quando ela estava sendo formulada, ele servia como embaixador norte-americano na França. Quando a leu, ficou satisfeito, mas fez duas ressalvas. Uma deficiência: não se fixava limite para o número de mandatos que o presidente podia exercer. Isso, temia Jefferson, era o caminho para um presidente se tornar rei de fato, ainda que não pela lei. A outra grande deficiência era uma declaração de direitos. O cidadão - a pessoa comum - estava insuficientemente protegido, pensava Jefferson, dos inevitáveis abusos daqueles que detinham o poder."

Thomas Jefferson viu que um presidente, ao se perpetuar indefinidamente no poder, pode trazer efeitos catastróficos a um país. Viu isso no século XVIII. Estamos no século XXI e gente como Daniel Ortega, Hugo Chávez e Manuel Zelaya não conseguem enxergar o que Jefferson já sabia há 220 anos.

27 de outubro de 2009

Publicação no Observatório II

Tive a felicidade de ter o artigo "Quando o assunto é Deus: a imprensa informa ou desinforma?" publicado no Observatório da imprensa. Aqui.